O embargo temporário da China à soja de cinco exportadoras brasileiras não se resume a um incidente comercial. Pelo contrário, é um reflexo de problemas estruturais no modelo agrícola do Brasil, marcado pela dependência de mercados externos, pelo uso intensivo de agrotóxicos e por uma lógica produtiva que compromete a soberania alimentar e ambiental do país. Enquanto autoridades brasileiras tratam o episódio como uma situação corriqueira, especialistas veem um alerta geopolítico e econômico que exige mudanças profundas na forma como o Brasil produz e se posiciona no comércio global.
A decisão da Administração-Geral de Aduanas da China (GACC) de suspender temporariamente as importações de soja de cinco grandes exportadoras brasileiras trouxe à tona questões delicadas sobre o controle de qualidade no agronegócio nacional. A detecção de pragas e resíduos de pesticidas nos carregamentos indica falhas em processos que, no contexto da crescente demanda por produtos agrícolas no mercado internacional, são cada vez mais escrutinados.
Embora o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) tenha minimizado o impacto econômico, enfatizando que outras unidades continuam a operar normalmente, a suspensão expõe vulnerabilidades do setor. O Brasil, que é o maior exportador mundial de soja, depende fortemente do mercado chinês, responsável por 54% de suas vendas externas do grão. Como destaca a economista Diana Chaib, da Universidade Federal de Minas Gerais, “a manutenção e expansão do mercado e comércio chinês dependem do cumprimento rigoroso de padrões sanitários e ambientais exigidos, e isso pode acarretar a necessidade de mudanças significativas nas práticas agrícolas brasileiras”.
Dependência externa e vulnerabilidade econômica
O agronegócio brasileiro consolidou-se nas últimas décadas como uma das principais forças econômicas do país, representando cerca de 27% do PIB em 2023. No entanto, essa pujança mascara uma perigosa dependência de mercados externos. Dois terços da produção de soja brasileira têm como destino a China, enquanto países como os Estados Unidos competem pelo restante do mercado. Essa concentração é preocupante, especialmente em um cenário de intensificação de disputas comerciais e tensões geopolíticas.
Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, aponta que “a aposta em um modelo de agronegócio voltado para a exportação deixou o Brasil vulnerável a crises catastróficas, caso grandes importadores decidam retaliar por razões comerciais, sanitárias ou políticas”. Episódios semelhantes já ocorreram em outros setores, como o da carne bovina, quando barreiras foram impostas sob justificativas sanitárias, frequentemente interpretadas como medidas protecionistas de países importadores.
No entanto, a questão vai além das barreiras comerciais. A monocultura de exportação também impacta a segurança alimentar interna. O Brasil, mesmo sendo um gigante agrícola, convive com índices alarmantes de insegurança alimentar: cerca de 33 milhões de brasileiros enfrentavam fome em 2022, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O modelo químico e seus custos
A suspensão das exportações de soja também reflete o impacto de práticas agrícolas baseadas no uso intensivo de insumos químicos. O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, muitos dos quais são proibidos em países da União Europeia e nos Estados Unidos devido a seus riscos ambientais e à saúde pública.
Karen Friedrich, pesquisadora da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), explica que o uso indiscriminado de pesticidas cria pragas cada vez mais resistentes, além de gerar graves problemas de saúde e degradação ambiental. “É a mesma lógica dos antibióticos hospitalares: de tanto usar indiscriminadamente, criamos bactérias super-resistentes. Na agricultura, o problema é similar, com pragas que se tornam imunes aos pesticidas”, afirma.
O modelo químico beneficia, sobretudo, grandes indústrias transnacionais como Bayer, Monsanto e Syngenta, cujas práticas são criticadas por movimentos sociais e ambientais. Enquanto isso, o agricultor brasileiro arca com os altos custos dos insumos e com a perda de competitividade no mercado internacional, onde cresce a demanda por produtos mais sustentáveis.
Soberania agrícola e geopolítica
O episódio envolvendo a China também ilustra a necessidade de diversificação das relações comerciais brasileiras. Desde a ascensão de seu poderio econômico, a China tem utilizado sua posição de maior importador global para impor padrões mais rigorosos aos seus parceiros comerciais, ampliando sua influência sobre os mercados globais de commodities.
Diante desse contexto, especialistas sugerem que o Brasil adote uma estratégia mais soberana, focada em fortalecer mercados regionais, como os países da América Latina e da África, e diversificar sua produção agrícola. “Um modelo agrícola soberano, baseado na produção de alimentos saudáveis e no fortalecimento do mercado interno, reduziria a dependência do Brasil em relação aos grandes importadores e aumentaria sua resiliência às crises externas”, defende Tygel.
Além disso, o episódio sublinha a importância de retomar políticas públicas como o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), desmontado nos últimos anos. A transição para uma agricultura menos dependente de insumos químicos é essencial não apenas para atender às demandas internacionais, mas também para garantir a sustentabilidade a longo prazo da produção agrícola nacional.
Reflexões para o futuro
O embargo chinês à soja brasileira é um sintoma de falhas estruturais que vão além das questões sanitárias. Ele escancara as limitações de um modelo agrícola que privilegia o mercado externo em detrimento da segurança alimentar, ambiental e econômica do país.
Repensar esse modelo exige coragem política e visão estratégica. Envolve diversificar parcerias comerciais, promover práticas agrícolas sustentáveis e reduzir a dependência de mercados voláteis e insumos químicos. Como observa Friedrich, “a sustentabilidade não é apenas uma exigência do mercado, mas uma questão de soberania nacional e justiça social”.
A crise atual, portanto, pode ser mais do que um incidente isolado: pode ser o início de uma transformação necessária e urgente no agronegócio brasileiro. A pergunta é se o país terá vontade política para aprender com o alerta chinês – antes que seja tarde demais.
SÉRGIO PEDRA
É agrônomo e pequeno produtor rural em Mato Grosso.
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